sexta-feira, 13 de março de 2009
Difícil não transformar em heróicos os fatos esportivos dos países do leste europeu após a dissolução da URSS. Desde a Grécia antiga até a devastada Alemanha pós-guerra, o esporte sempre foi um componente aglutinador em culturas devastadas por anos de imposição e sublimação de minorias. A falta de amor-próprio, reação natural pós-traumática, é um dos fatores que impede a mobilização, a reconstrução da unidade perdida. Torna-se então necessário um processo doloroso, lento e gradativo de unificação cultural. Nesses momentos da história a superação dos atletas toma características simbólicas. Todo esse papo que ouvimos aqui no Brasil em época de olimpíadas ou copa do mundo, de que essas conquistas são coletivas, de que os atletas são nosso orgulho, não passam de falácias – exceção feita a 58, 82 e 86(1). Torna-se no entanto afirmação nesses países em ruínas, onde tal atitude não é apropriada pela nação, mas sim uma oferenda dos atletas ao povo do qual fazem parte.
Algumas seleções, como a Iugoslávia e a Tchecoslováquia, apesar das obrigações de uma unidade inexistente, sempre possuíram seleções competitivas(2). Quase todas as outras pareciam ter suas forças sugadas pelo poder central do qual eram excluídas. Mas a primeira copa do mundo após o fim da URSS e do domínio comunista havia de se notabilizar pela campanha surpreendente de uma grande surpresa do leste. O que para muitos poderia parecer um assombro era uma equipe que vinha cuidadosamente se estruturando, e não se importando com a ignorância do resto do mundo em relação a si. Mesmo quando a poderosa França de Eric Cantona levou um gol aos 46 do segundo tempo, no último jogo das eliminatórias européias, e viu afundado o sonho de ir aos Estados Unidos, tendo a vaga tomada pela inexpressiva Bulgária, muitos pensaram tratar-se apenas de um golpe de azar.
Quando a copa de 1994 começou eram apontadas como possíveis surpresas apenas algumas seleções africanas (Camarões principalmente, e Nigéria por fora), a Colômbia com uma campanha irretocável na qualificação sulamericana, e até a fraca Bolívia, que centrada em seu astro "El Diablo" Etcheverry, havia derrotado o Brasil nas eliminatórias(3) – ajudados pelos 4000 m de altitude e a mão amiga de Taffarel. Tal descrença no time búlgaro somente aumentou diante da goleada levada na estréia diante da Nigéria, 3 a 0. Quando observamos o futuro retrospecto do time do leste, fica difícil imaginar que este jogo tenha sido disputado pelo mesmo. Coisas de estréia. Começo de copa do mundo.
Me parece que para quem supera fatos muito graves, motivação e superação não são problema. Muita coisa pode ter acontecido, quem sabe. A minha hipótese é de que os jogadores tenham recebido algumas notícias lá do leste: a vizinha Romênia tinha começado muito bem, o pessoal estava bem empolgado. E quando foram deitar, não conseguiram dormir, Ficaram pensando em como seria legal se pudessem fazer o mesmo, deixar o pessoal do bairro feliz como os vizinhos. E por que não poderiam, oras? Outra teoria é de que os jogadores tivessem ouvido alguma narração brasileira, onde muito antes de se analisar o potencial do time, chacotava-se a Bulgária simplesmente como o time dos "ovs" e nada mais (Mihailov, Ivanov, Hubchev, Tzvetanov, Kiriakov, Yankov, Letchkov, Balakov, Stoichkov, Kostadinov, Penev). Muitos poderiam dizer que o sucesso do time se deve ao talento de Stoichkov, e embora não possa de todo discordar, diria por outro lado que é uma grande injustiça. Stoich era um grande craque: ídolo do Barcelona, artilheiro do time e da seleção, pode-se dizer que para a Bulgária foi como Pelé e Maradona. Mas mesmo com todas essas qualidades, ele não foi a estrela solitária do time. Ele era algo como um ponta esquerda, já que a Bulgária jogava muito no 4-3-3. Suava para levar a bola do meio ao ataque, fazendo grande parte das dobradinhas com Balakov, mas o objetivo de ambos, assim como de todo o resto da formação ofensiva , era o centro-avante Penev. Acontece que apesar do avançado, a Bulgária não tinha um referente claro como era Romário na seleção brasileira. Portanto, a bola rodava os três ofensivos e parava no pé do melhor posicionado. Nisso, de fato, Stoichkov era quase imbatível, posicionamento era seu forte.
Dizem que os fatos não nos deixam mentir, e embora discorde disso, vamos a eles. Ressaltarei dois jogos. Argentina e Alemanha, campeã e vice da copa passada (1990).
A equipe búlgara fazia parte do grupo D, do qual também participavam a sempre favorita Argentina, naquela que seria a última copa de Maradona, a surpresa Nigéria, e a fraca seleção da Grécia. Já se dava como certa a classificação de Nigéria e Argentina e eliminação de Bulgária e Grécia. E tal impressão foi totalmente confirmada quando terminada a primeira rodada. Argentina 4 x 0 Grécia, e Nigéria 3 x 0 Bulgária. O grupo D era considerado uma das maiores babas daquela copa, embora eu particularmente ache que muitas seleções desqualificadas figuraram na competição, baixando consideravelmente o nível desta. Mas eliminatórias são justamente para eliminar, e não há como mudar isso.
Passada a primeira rodada o time búlgaro não tinha muito o que comemorar, iria enfrentar Grécia e Argentina, e mesmo tendo ganhado da primeira de 4 a 0, ainda seria muito difícil se classificar, pois 3 pontos não seriam suficientes para passar como terceiro colocado. Então sem muitas esperanças, mas com toda a vontade, a Bulgária foi para o tudo ou nada com a então atual vice-campeã mundial Argentina. Se até então a confança do time búlgaro era Stoichkov ele converteu isso em realidade. Num jogo que valia tanto a Bulgária não economizou. O número de cartões foi alto para os padrões de uma copa do mundo, a bulgária levou cinco amarelos e um vermelho. Mas o resultado final é incontestável. Toda a raça búlgara havia sido recompensada: 2 a 0 na cabeça de chave do grupo. Com esse resultado Nigéria, Argentina e Bulgária empataram com 6 pontos, e nos critérios de desempate a Nigéria ficou em primeiro, a Bulgária em segundo e a Argentina em terceiro. Os gols desta partida foram de Stoichkov e Sirakov. O que pode ser feita de ressalva desta partida é que a Argentina vivia um péssimo clima pois no jogo anterior Maradona havia sido pego no anti-doping e punido por 15 meses, naquilo que parecia ser sua despedida despedida da seleção ou até do futebol.
Era de se imaginar que a façanha búlgara acabasse por aí. A brincadeira já poderia ter ido longe demais. Mas dê a onze homens um bom motivo e eles podem realizar feitos inimagináveis dentro de quatro linhas. A Bulgária queria mais, e depois de passar pelo México nas oitavas de final, nos pênaltis, chegou com sangue nos olhos pra enfrentar a Alemanha pelas quartas-de-final. A julgar pelo que jogou eu quase posso imaginar a preleção daquele jogo. Um dia uma amiga (Fabiana) comentava comigo sobre as músicas que alguns treinadores colocam para estimular seus times, e fico imaginando que música teria tocado no vestiário búlgaro antes daquela partida: talvez Bohemian Rhapsody (título que traduziria bem a campanha), mas sei lá, fico mais tentado a imaginar algo como Slayer, Metallica. Cada jogador parecia um solo de Hetfield, rápido e certeiro. Mesmo nas quartas-de-final as pilhas pareciam novas. e a Alemanha, claramente demonstrando precisar de uma renovação, não segurou o torpedo do leste. O jogo não poderia ser mais dramático. A Bulgária perdia o jogo até meados do segundo tempo. E foi justamente naquele momento que qualquer jogo de futebol costuma ficar morno, longe do começo e quase perto do fim. Foi nesse momento onde normalmente se baixa o ritmo, quando os alemães tomaram fôlego, que o esquadrão Búlgaro liquidou a fatura: dois gols em cinco minutos. Primeiro uma falta cirúrgica de Stoichkov, depois um peixinho heróico de Letchkov. Ao fim daquele jogo o mundo todo se perguntou "sério?" ao saber o resultado do jogo. E era. Só posso dizer que a comemoração dos jogadores búlgaros ao fim daquele jogo foi mais emocionante até mesmo do que a comemoração brasileira depois da final. O que se via em campo eram homens que simplesmente chegaram ao seu limite físico mas cumpriram uma missão. A pequena torcida búlgara nas arquibancadas do Giants Stadium (e parece obra do destino o nome do estádio) chorava como se a independência do país tivesse finalmente chegado. Fazendo um paralelo com filme brasileiro lançado recentemente, 1994 foi o ano em que o mundo descobriu a Bulgária.
O jogo seguinte, semi-finais, prometia ser ainda mais difícil: a Itália. Não a Itália derrotada nas semi-finais quatro anos antes, mas Itália do genial Roberto Baggio. Nesse jogo, para tristeza de todo mundo que não era italiano, a Bulgária ficou pelo caminho. Um 2 a 1 valente, e a certeza de que o país tinha escrito seu nome na história das copas. O que não é para muitos, e talvez nunca seja repetido pela própria. Mas se o futuro é incerto (estando atualmente a seleção búlgara numa vala terrível), o passado os pertence, e será algo de que aquele povo, tranquilo nos cafés de Sofia, poderá sempre se orgulhar.
A melhor forma de projetar a importância daquela seleção para o povo búlgaro é observar o futuro destino de alguns dos jogadores. O goleiro Mihailov tornou-se presidente da Federação Búlgara de Futebol, Penev é técnico do CSKA Sófia, Letchkov, virou prefeito de sua cidade, Sliven, e vice-presidente da Federação Búlgara de Futebol, e Hristo Stoichkov foi técnico da seleção búlgara.
Notas:
1. A primeira pelo fato de que o Brasil ainda era potência adormecida no futebol, despertando desde então, e as outras duas pelo sentido oposto ao da copa de 70: o esporte como combustível para o movimento democrático.
2. Há que se ressaltar que em geral essas seleções eram representadas por apenas uma parte do país, justamente, onde havia certa unidade. Exemplo disso é o fato, por exemplo de que após a dissolução da Tchecoslováquia, a Rep. Tcheca foi a herdeira do futebol forte, enquanto a Eslováquia não conseguiu muita coisa. Essa herança é inclusive reconhecida pela FIFA.
3. Primeira derrota do Brasil na história das eliminatórias.
Fontes:
http://www.imondialidicalcio.net/uk/nazionali.asp?id=10
http://expertfootball.com/history/bul_1994.php
http://en.wikipedia.org/wiki/1994_FIFA_World_Cup_qualification_%28UEFA%29#Group_6
http://en.wikipedia.org/wiki/1994_FIFA_World_Cup
http://www.futebolforca.com/?p=339
http://en.wikipedia.org/wiki/Yordan_Letchkov
http://es.wikipedia.org/wiki/Luboslav_Penev
http://blogportista.com/emil-kostadinov/
http://www.cmgworldwide.com/sports/stoitchkov/
http://globoesporte.globo.com/ESP/Copa2006/Historia/0,,HHR0-5187-481,00.html
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2002/020307_galeria1994.shtml
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Copa de 1994
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